Histórias não relacionadas à corrida: Dias de Sol

 


Mês passado eu assisti, no salão pleno do Tribunal Superior do Trabalho, como parte das atividades do Seminário de Trabalho Decente,  ao filme Pureza. Brasileiro, de Renato Baratieri, tem como tema de fundo a escravidão na área rural. É uma história real, tão real que alguns atores são trabalhadores libertos. Libertos porque não há outra palavra para descrever ao que eram submetidos até então: escravidão. Nada moderna ou contemporânea.

A história da Pureza e do seu filho Abel não se passa no início do século 20. É do início do século 21, quando, segundo Domenico de Masi, estaríamos usufruindo do nosso ócio criativo, deixando as máquinas realizarem o trabalho pesado e enfadonho, e nós nos dedicaríamos às artes, às conversas, à natureza, tendo, naturalmente renda distribuída adequadamente.

Não vou dar muito spoiler porque recomendo fortemente que todo mundo assista ao filme. Tem que ver. Tem que ver e sentir,  sofrer,  lamentar,  se revoltar, e não entender como ainda estamos nesse ponto.

E como a vida é como ela é, na mesma tarde eu fui a um salão de beleza no shopping em Brasília fazer minha mão, e comecei a conversar com a Sol, a manicure, neste caso porque eu que sou assim mesmo. Gosto de ouvir as histórias e a dela era a seguinte: morava no interior do Maranhão, e, aos 15 anos,  uma conhecida de sua mãe foi morar no Pará e “se ofereceu” para levar a Sol com ela, para ir para uma escola melhor e fazer companhia para a sua filha, de idade próxima. 

Embora tensa em se separar da filha, acabou concordando, com esperança de um futuro melhor. E é assim que as histórias de escravidão dita contemporânea começam. O que aconteceu a seguir foi o clichê medonho: chegando lá, a única promessa cumprida foi manter Sol na escola. No resto do tempo, ela limpava a casa, lavava as roupas todas – à mão, fazia comida para a família, e, se não ficasse tudo a contento, levava umas bofetadas no rosto, tanto da “amiga” da mãe quanto do marido dela. Ele, segundo Sol me contou, tinha uma amante e chegava de madrugada, quando Sol tinha que esquentar o jantar para ele, obedecendo às ordens da sua...patroa? madrinha? Exploradora?

Sol entregou seu documento de identidade à dona da casa já na viagem, e claro que ficou retido. A mãe de Sol ligava para a casa da “amiga”, de um orelhão (jovens, pesquisem), para falar com a filha, e a dona da casa ficava ao lado para ouvir o que ela dizia, já tendo avisado previamente que se reclamasse das condições ia apanhar.

Ela me contou tudo isso para me dizer que como lavava muita roupa na mão, com uns produtos ruins, adquiriu uma dermatite de contato, e por isso logo que pôde, na vida já adulta, comprou uma máquina de lavar roupa para si. O maior luxo.

Eu perguntei como ela se livrou dessa situação. Afinal, ela era adolescente, em uma cidade estranha, sem dinheiro, sem documento, sem dignidade. Foi assim: depois de uns dois anos,  ela começou a namorar um rapaz um pouco mais velho, e contou para ele o que se passava, como era sua vida. Ele ficou chocado e horrorizado, e queria que ela saísse da casa, e ela não tinha coragem porque, como tantos e tantas, não tinha para onde ir, não tinha nenhum dinheiro, nunca recebeu nada, não tinha prática de vida fora de casa, então não via muita saída.

Um dia, na saída da escola, ela demorou a sair e a dona da casa praticamente a arrastou, e bateu nela, e o namorado da Sol viu. No dia seguinte, ele foi encontrá-la na escola e já levou diretamente para a casa dele, onde Sol foi acolhida pela sua família, que disse que não a deixaria voltar para aquela casa. Ela estava muito assustada, e vivendo no seu limite do pavor e do medo do desconhecido, achava sinceramente que queria voltar para lá, para não sofrer consequências e não ficar ainda pior. A Sol não se reconhecia fora daquele ambiente, e tinha medo, vergonha, e nenhuma perspectiva, tudo junto.

Mas o namorado dela e a família dele não tinham medo, e foram à polícia.

Como a história, pelo que entendi, faz uns trinta anos, o que aconteceu foi que a polícia chamou a dona da casa e disse que se ela não desse dinheiro e o documento de volta para a Sol em 24 horas, seria presa e processada. O namorado, fofo, queria casar com a Sol, mas ela só enxergava nisso mais um aprisionamento, e preferiu voltar para casa, para sua mãe, que desconfiava que algo estava errado, mas não sabia nem a cidade em que a filha estava. Porque é assim mesmo que as coisas acontecem, embora pareça muito absurdo (porque é).

Uma escrava doméstica, uma mucama, escravidão com suposto afeto – que nesse caso nem isso tinha. Não concorda? Qual outro nome se dá? Na verdade, embora eu seja fã da linguagem, tenho que ter em mente  que não importa o nome que se dê, continua sendo o que é: submissão a condições análogas às de escravidão. Não tinha documento, não tinha liberdade de locomoção – a dona ou o marido iam buscar na escola todos os dias, trabalhava sem horário nem limite de jornada ou duração semanal, sem folga, sem receber. Sofreu até castigo físico. Encaixa bem no conceito, eu acho.

Ela foi salva pelo afeto de outra pessoa, um afeto consciente da situação de exploração. Um afeto com solidariedade e compaixão.  Mesmo sofrendo por ela não querer casar com ele, Sol me disse que o (ex)namorado entendeu que ela quisesse primeiro ser livre de verdade, e voltar para sua cidade.

Estabelecida em uma nova vida, ela me contou que, anos depois, morando no Rio, uma pessoa se ofereceu para levar sua filha, então com 12 anos, para São Paulo, com a mesma conversa. Ou seja, no início deste século, ela viu alguém tentando replicar sua situação.

Trabalho escravo no campo, na cidade, no âmbito doméstico. No doméstico com ainda mais invisibilidade. Eu fiquei ouvindo e pensando no meu lugar de privilégio, que não pode servir para retirar o olhar apurado sobre quem está em volta. Obrigada por compartilhar sua história, Sol. Não, eu não comentei com ela que tinha assistido ao filme. Foi realmente uma coincidência – ou não – eu ouvir a história dela no mesmo dia. À luta, meu povo, por quem não consegue. Ser livre é o mínimo.

 

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