Uma única coisa?


 

No livro que escrevi sobre transição de carreira ("Mas para você é fácil: as dores e delícias de decidir mudar tendo 'a carreira perfeita'"), eu menciono uma obra chamada A Única Coisa, que trata, como podem imaginar, de se manter firme no foco daquilo que você se propôs a fazer. A ideia é não se distrair com outras atividades que te tirem do caminho rumo àquele objetivo, ou seja, que todas as suas escolhas sejam sempre pensando naquela meta final, para que aquela seja bem sucedida. 

E embora eu tenha entendido a mensagem, fiquei incomodada com aquilo de "uma" única coisa, e abordei isso no meu livro no aspecto profissional, em resumo com o seguinte: eu gosto de plano B. Como boa virginiana, gosto de controle, e ter na minha mente um plano B caso o plano A não funcione, me dá mais leveza inclusive para ir atrás do plano A, e é por isso que divirjo da conclusão de que se você tiver um plano B, não dará a devida importância ao A, porque tem para onde ir. Primeiro, não é o que acontece comigo. Segundo, e daí se for? (se quiser saber qual o meu, pode ler o livro...rs)

E aí você está lendo e pensando: e onde entra a corrida nisso aí?

A corrida foi o esporte que escolhi como minha "única coisa",  no sentido de ser a ela minha dedicação maior. Eu faço musculação há quase trinta anos, e repito, sempre, que é essencial o treino de força, especialmente para mulheres, especialmente a partir dos quarenta anos, especialmente para mulheres corredoras com mais de quarenta anos. E apesar de eu pessoalmente gostar de musculação, de fazer força mesmo, a verdade é que não dá a alegria no final do treino, aquela que corredora sente. Não termino com um sorriso de quem liberou muitas endorfinas. Termino me sentindo forte ou tremendo da força que fiz, e satisfeita por estar trabalhando meu corpo rumo ao que desejo para o presente e o futuro. Mas felicidade mesmo...não né?

Como quem já está aqui há mais tempo sabe, eu comecei a correr para me livrar do estresse do estudo para o concurso, nem sabendo que existia prova de rua, medalha, pace, índice, Boston...achei ótimo, mas eu ainda era uma nadadora que corria, e a natação sempre me deixou muito, muito feliz, em flow total, calma, achando que nenhum problema é tão ruim assim. Depois que tive o Arthur, a corrida voltou para me ajudar a perder os quilos da gestação, pela sua praticidade inclusive. Não precisa de ninguém, vale qualquer horário, a preparação é rápida (já notando a diferença para a natação, que é uma função danada). E aí eu viciei mesmo. Não se iludam, sem dieta não se emagrece, mas a corrida tem uma alta queima calórica, então ajuda, sim, se a pessoa não ficar achando depois que "merece" comer o triplo do que precisa, porque "hoje pode" (acho isso estranhíssimo, de hoje em hoje é que se vai ao fundo do poço).

Enfim. Muito mais do que para emagrecer, a corrida virou o meu momento, e quem é mãe já entendeu. Para quem não é, explicação rápida: é muito difícil uma mãe ter um momento sozinha, e, pasmem, a maioria das mães que eu conheço valoriza muito um momento só para si, que não seja de banho e necessidades fisiológicas. Algumas têm vergonha de assumir esse desejo de solitude, acham que as torna mães não tão boas. Já eu acho que mãe tem que ter vida própria, afinal antes de ser mãe é uma pessoa, e que isso ajuda a não despejar nos filhos suas expectativas todinhas. Mas essa é realmente uma opinião, e respeito quem pensa e faz diferente. 

E assim como ao nadar,  enquanto você corre, não há contato com outras pessoas, a gente não atende nenhuma demanda, e fica incrivelmente só com seus pensamentos e seu corpo. Dá para chamar de meditação ativa, de fuga da realidade, de antidepressivo natural...e pode não chamar de nada, porque não precisa ter nome. Quando o Arthur era pequeno, qualquer tempo já valia a pena: tenho trinta minutos? bora correr que está lindoooooo. Muitos malabarismos para que a rede de apoio assumisse durante um tempinho super bem aproveitado, e com a garantia do retorno de uma mulher com um sorriso no rosto, cansada e suada, e muitas vezes cheia de ideias, com nova visão de um problema anterior, ou simplesmente mais leve. O problema não some quando você corre, mas você pode passar a encará-lo sob outra  perspectiva.

O negócio é que realmente eu despejei muita responsabilidade na pobre da corrida. Fazendo fortalecimento e seguindo planilha (sou uma ótima cumpridora de planilhas do treinador. o que ele manda, eu faço), em geral eu fui bem, progredi, em velocidade e distâncias, e tive lesões em situações bem específicas nos primeiros anos: aquela canelite que iniciantes que se empolgam têm, e no meu caso, uma que evoluiu para uma fratura por estresse porque negligenciei a musculação para treinar forte para uma prova de corrida em Urubici. Não tive problemas nos joelhos, panturrilha, quadril, aquelas lesões comuns em corredores. Mas quem já leu este blog antes, já me viu reclamar da vida de lesionada, e o mau humor que traz. Tenho até dó dos outros. 

E eis que em 2021 surgiu essa lesão nova para mim, embora decorrente de uma condição que eu tenho, ou seja, era só questão de tempo: síndrome  compartimental crônica, na região do tornozelo esquerdo. Tenho uma dor violenta numa região específica, próximo ao tibial, que pode "rodar" e vir para a frente, quando fica insuportável. Pode também evoluir para uma dormência no pé todo, uma delícia. Dependendo de como está a dor do dia, eu tenho que voltar para casa, mas cada vez mais estou conseguindo lidar com isso, então faço uns alongamentos, umas mandingas, mais a fisioterapia, liberação miofascial e exercícios. 

Achei essa explicação legal para todo mundo entender: "trata-se de um aumento da pressão na musculatura  e nos demais tecidos contidos em um espaço delimitado pelas fáscias (aos quais chamamos de compartimento). Na forma crônica, quando o esportista esta em repouso, a pressão do compartimento é normal e praticamente, nada se sente. Durante o esporte, no entanto, a pressão sobe, reduzindo o fluxo sanguíneo de nervos e músculos com consequente desenvolvimento de sintomas." (9https://adrianoleonardi.com.br/artigos/sindrome-compartimental/) 

Basicamente é como se o sangue não circulasse na região, travasse tudo. É bem louco porque logo depois de parar de correr, também para a dor, como se não tivesse acontecido. O tratamento recomendado é cirúrgico, que não estou a fim de fazer. Então eu venho administrando isso há dois anos, mas já percebi que alto volume piora o quadro, ou seja, uma nova maratona ficou um sonho cada vez mais distante. Até meia maratona, porque dificilmente eu passo de 15km em um treino sem que na semana seguinte, somando com as outras rodagens, eu não tenha dias ruins de verdade. 

Já fiquei bem triste com isso, já tive dias de muito desânimo. Às vezes ainda tenho. Sair de casa sem saber se o treino vai rolar é péssimo. Já voltei para casa depois de 2km, de 1km, de 500m. Imaginem a raiva da pessoa. E o pior é que atualmente as crises vêm depois de um período bom, de consistência e até melhora de rendimento. Então quando eu acho que "agora vai", tenho que dar mais uma parada, e cada recomeço é muito chato, depois de 15 anos na vida de corredora. 

E aí que vou chegar no ponto: não tem outra coisa que dê a mesma alegria. Pedalar não me diverte, fica pelo exercício mesmo, e só o elíptico, na academia, que me traz pelo menos o mesmo suor nojentinho. Nesses dias eu fico pensando que tenho que ter outro esporte. Eu, que sempre tive plano B, me vejo toda arrasada e, de quebra, claro que tenho que cuidar ainda mais da alimentação porque o gasto calórico fica reduzido. 

Aí alguém diz: faz beach tennis, todo mundo está fazendo. A filha de Bernadete não é todo mundo. Eu não sou boa com bola, não quero um esporte em que eu dependa de outra pessoa para treinar, e não quero ficar cheia de areia toda vez. Isso, fresca. Taekwondo, como o Arthur, até pensei, mas tem que decorar muitos movimentos, não estou pronta. E não sei se quero lutar. 

Segui só com o plano A em nova fase: relação de leveza com a corrida. Deu bom? ótimo. Não deu bom, mas deu algum treino? alegria de correr existe, e vamos de recomeço. Mas aí a vida ri da gente e vem com essa: estou com fascite plantar no pé...esquerdo. E dói, minha gente. Credo, como dói. Porque dói para andar. Então é um plus, já que eu adoro fazer tudo a pé: supermercado, correios, lojas, deslocamentos em geral. Aí parece sacanagem, porque para andar dói mais do que para correr, que já é medonho. Estou toda torta, e foi o fim. Deu. Não posso depender da corrida. 

Então, o que? Depois de passar na frente e ver as pessoas com cara de força várias vezes, resolvi testar o remo indoor. A academia fica a 30 metros da minha casa. Tem horário de aula, é verdade, mas também posso fazer sozinha, e os horários são variados. Tem a cadência do movimento constante que eu gosto, a possibilidade de alterar a forma de movimentar, diferentes tipos de treino (sim, quem diria?), e mexe com muitos músculos, como a natação, mas de uma forma totalmente diferente, e sem impacto, que é o que eu preciso agora. 

Minha intenção não é abandonar a corrida, pelo contrário, mas é tirar o peso que eu coloco nela para minha alegria interior, meu relaxamento, minha relação com meu corpo, meu humor. Só quem corre sabe, eu nem sei mais explicar para os outros hoje em dia, porque eu falo e a pessoa diz: mas você não é feliz no trabalho, em casa? Sou, isso é outra coisa, é o borogodó, é a faísca no olho, é "a minha coisa".

Espero agora estar criando  mais uma única coisa, como eu tenho na vida profissional. Como é indoor, não depende de estar um dia bom ou ruim, mas já estou querendo remar ao ar livre também, e no verão estarei arrasando no nosso caiaque na praia da Daniela, ah, se vou. 

Fisiologicamente, tenho fé que o remo ajude a manter meu condicionamento cardíaco-respiratório para eu não sofrer cada vez que retomo a corrida depois de uns dias parada. As pernas continuam sendo exigidas, e agora com essa delícia de puxar o remo e sentir as costas. O movimento é delicioso realmente, faz força, depois solta, e deixa "o barco" ir, sente o ritmo, a "voga", na linguagem do remo...

Para terminar com mensagem de otimismo, essa é para quem acha que não gosta de exercício: tem alguma atividade aí, em algum lugar, te esperando. Eu não sou a pessoa que era boa na educação física,  que sempre esteve se movimentando por aí, pelo contrário. Sou péssima em esportes em equipe (ninguém lembra de mim em nenhum esporte no colégio), fui gostar na vida adulta, e bem especificamente de algumas atividades. Mas eu sempre fiz alguma coisa, é verdade, mesmo sem gostar, enquanto esperava pela "minha coisa". O corpo agradece, e se você achar "a sua coisa", sua mente também vai adorar. 


p.s. a foto é do remo indoor ao ar livre hahahahaha. É que só tenho essa foto, foi do dia em que levamos tudo para fora, foi ainda mais legal. 









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